quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Queime depois de ler

"Minha mão está suja

Preciso cortá-la." (CDA)



Quanto  vale uma lembrança?

Como maltratá-la? A quem ela serve?

Escrevo por não gostar de esquecer.  ( e quem gosta de ser esquecido?)


Dedicatórias. Mais gostoso que ganhar livros, é notá-los dedicados. De um calhamaço genérico e replicável, cria-se o especial. Cria-se a vontade de saber o que a pessoa quis lhe dizer ao oferecer esta ou aquela obra. Separemos os planos: há as dedicatórias formais, feitas geralmente pelos autores (como na foto acima), que refletem apenas uma admiração unilateral, idealizada; e há as dedicatórias sentimentais, tecidas por amigos, namorados, admiradores secretos. A estas me apego. Dedico-lhes gavetas e estantes, mais estas linhas. Às outras reservemos os museus, os grandes memoriais, e os póstumos leilões. 

Escrevo dedicatórias como quem prefacia um livro, tencionando me aproximar das palavras que virão e das pessoas a quem me dirijo. Junto as frases alheias às minhas, e ensaio a intimidade pela literatura. Crio a expectativa da avaliação do outro. Se gostar, reitera nossas afinidades. Se não, é questão de gosto (, né?). Chegará o dia em que eu escreverei dedicatórias em cadernos em branco, oferecendo-as como protagonistas, não como aperitivos. Poderão escrever maravilhas nas folhas, agigantando minhas palavras, ou simplesmente as deixarão alvas, constituindo o livro sobre o nada: o meu pretexto pra dedicar.

Dia desses eu soube que uma de minhas dedicatórias fora destacada de um livro. Sob a alegação de que o ato serviu para evitar um constrangimento com a pessoa que iria recebê-lo por empréstimo, a folha de rosto, pintada por meus dezenove anos, fora suprimida. Melhor que tivesse me pedido outro exemplar, ou que tivesse negado o empréstimo. Antes mesmo tivesse, num acesso de raiva, queimado todo o livro. Que ele tenha resistido, dissimulado, amputado, é que me chateia. Voltou a ser mais um dentre os tantos ensaios sobre a lucidez. Voltou a ser papel inanimado, comercializável.

(Numa situação semelhante, talvez eu hesitasse ao pensar no que fazer, mas o provável é que eu delegasse à própria pessoa a opção de lidar ou não com palavras supostamente indesejadas)

A folha dedicada, ao que parece, está guardada nalguma gaveta intocável. Ficará lá, aguardando (o quê?), alheia à trajetória do livro que a motivou. Antes carinho, agora veneno. Por ser nociva, fora afastada. No fundo... não a culpo. (porque) Conheço-a. Não peço que partilhe de meus valores cacetes. Mais: não pretendo escrever para crucificar os que abdicam de palavras a si dedicadas. Minhas palavras é que são corporativistas, e defendem umas às outras.

De algum modo, é como se eu cantalorasse Adriana Calcanhoto (o retrato que eu eu te dei / se ainda tens, não sei / mas se tiver, devolva-me). É como se eu precisasse saber quem eu fui. É como se, pelas minhas próprias palavras, eu voltasse aos meus anos pregressos. Não prescindo mesmo daquilo que já não é mais meu. As coisas passam, mudam... e algumas páginas já não dizem nada: é preciso [cortá-las.(?)

Ou reescrevê-las.(.)]


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"Pra esvaziar o já deserto
desorienta o incerto
ruma sem trajeto
nunca existiu mas eu deleto".
(Lenine)

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