quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Chuva e Praia





"Respirar
sentir o sabor do que comer
Caminhar
se chover, tomar chuva"
(arnaldo antunes)





Não é comum eu repetir temáticas. Menos normal ainda é escrever dois textos seguidos sobre eventualidades climáticas. É notória a irregularidade do tempo: que a minha também seja permitida.


Comprometi-me a falar sobre a junção de mar e chuva. De praia e chuva, na verdade. Essa mesma imagem que já deve ter surgido em sua cabeça. E as outras possíveis. É isso: vamos de praia, não só de mar.


Mar e chuva é dois; praia e chuva é par.


Mar é prosa: é todo extenso, sabe de tudo. É explorado devagarinho, vez em vez, com a certeza de quem sabe que irá encontrá-lo sempre, verde, azul, sem cor...ondulado.


Chuva é poesia: pode ser pequena, quase haikai. Pode ser grandona, quase lusíada. É devorada, arrebata, deixa todo mundo sem entender nada. Gera um sentimento sempre relativo. Chuva na cidade: inferno. No campo: vida. Na praia:


Esperem! Na praia. É disso que eu prometera falar.


A chuva chegou. Pense nela vindo pela voz do Arnaldo Antunes, da "epígrafe" ali de cima. "Chuva naquela voz é trovão"*. Chuva na voz do Lirinha, ali do "epílogo", é trrruvão. Na minha é papel. Escrevo minha voz pra não ter de falar muito. Chovo escrevendo c + h + u + v + a: chuva!


Agora, admitam, por mais que o sol seja automaticamente associado à praia, é lindo o encontro das águas, não? Ver o mar bebendo água. Ele, que chove em si mesmo, que é todo molhado, não manda na chuva. Espera-a. Quando não chove, o mar é sertão. É minguante.


Praia com chuva é deserto. Soa estranho praia e deserto, mas é o que é. E praia deserta é tão praia, tão bonita de ver. Começa a chover, e é contramão: famílias fugindo pros seus refúgios, areia esvaziando, e a chance de meninas chegarem correndo, cantando, traindo o sol.


A mão aberta, espalmada, conta-gotas.


E o ponto de exclamação não lembra gota, água? Sintam: ! (gota); !!! (chuva);
!!!!!!!
!!!!!!! (temporal)

(Procurando fotos que ilustrassem esse texto, o que eu mais vi foi gente se protegendo da chuva em plena praia. Tão desvirtuada fica a paisagem. Desvinculem de minhas palavras a noção de tempestades assustadoras, que essas também me afastam. No mais, deixemos chover. De leve, haikai, lembra?)


Gosto de sol. Gosto, feito todos nós, de vê-lo nascer e morrer, mas também gosto de chuva. Daquelas cenográficas, de tardezinha, que vêm e desiludem o pôr-do-sol (sei que o que pareço estar dizendo é que gosto de praia, seja como for. E é, mas não importa, pois era a vez da chuva, ok?)


Que o sol venha outro dia, e eu o escrevo com igual prazer.


Hoje chove por aqui, e é como se eu precisasse estar na praia pra ao menos constatar meus exageros. Eles resistiriam, literários, prescindindo da realidade, que é tão mais distante... e não vale a pena.



"O sabiá no sertão
quando canta me comove
passa três meses cantando
e sem cantar passa nove
porque tem a obrigação
de só cantar quando chove"
(declamado por Lirinha)

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Texto resultante de uma proposta feita por Camila de Sá. Nós dois tínhamos de escrever algo sobre praia + chuva. Se quer mesmo me ser leal, vá ao blog dela e complete suas impressões! http://rabiscadores.blogspot.com/

* frase de camila de sá

P.s.: foi eu falar da chuva e pedir que ela não viesse na hora do futebol, e pronto: ela veio, no último sábado!

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Com que roupa?





"vai chover... de novo
deu na tevê...que o povo
já se cansou...de tanto céu desabar"
(Marcelo Camelo)



Basta não ter o que dizer, e se recorre à instabilidade do tempo. Conversa de elevador, de sala de espera, de semi-conhecidos. Quem explica esse frio de hoje se estava tão quente ontem? Será que vai chover no fim da tarde? E eu sempre saio sem blusa...que tempo doido, não? Acrescente as frases similares que cansamos de repetir por aí, trocando tempos e semblantes gentis, e teremos nosso repertório de insatisfações climáticas. Agora o coloque sob seus olhos, e pressinta o que irei dizer.

Escrevo pra me opor a essas reclamações. Sou conhecido e caçoado por não me dar bem com guarda-chuvas e, vez ou outra, chegar a algum lugar com umas gotas a mais no traje. Há ainda os maldosos, que dizem que meu cabelo (de microfone, cotonete, valderrama, etc) é que substitui o protetor chuvar, e que, portanto, não é mérito nenhum eu abdicar de seu auxílio artificial. Descontadas as calúnias, garanto: prefiro a chuva, sempre. Andaria sem guarda-chuva ainda que a chuva fosse a mais provável das supresas verpertinas.

Pois bem, apelo à delícia que é o acaso. Defendo a imprevisibilidade do tempo. Sem ela, seríamos tão mais sisudos. Do que falaríamos quando nada fosse contrário à normalidade e à rotina humanas? Aí que está a chave: o "normal" de nosso clima é ser caótico. Semelhante ao que se dá com a metrópole mal-criada: via de regra, é caótica. Patológico seria se pudéssemos domar também o clima que nos abriga (já que as cidades, excepcionalmente, podem ser domesticadas até o habitável). Obviamente, há um pouco de (descaso) humano no caráter descontrolado do tempo, mas há também a insubordinação da natureza às nossas leis. Que ótimo, não?

Tanto escrevo, tanto escrevo, e ainda não disse. A pergunta: quem é/está maluco? O tempo? Ou nós que, condicionados à vidinha de filhos-que-não-saem-de-casa-sem-uma-blusa-de-frio-na-bolsa, blasfemamos aos céus a cada pé d'água insuspeitado? (essa é a típica pergunta tendenciosa, que quase o obriga a concordar comigo. Se não quiser, no entanto, não o faça. Responda: "maluco é o tempo mesmo." e terá, no mínimo, a aprovação segura de minha avó. Segundo ela, no Egito tempo de frio era frio, de calor era calor: cobertores dobrados no fundo do armário. De qualquer modo, lembre-se: pirado é você)

Passo um pouco de frio, mesmo que apenas sirva pra chegar em casa e, ao ouvir o "não te falei que ia esfriar a noite. Passou frio, né?" de minha mãe, dizer: "Não, não passei." Tomo bastante chuva, imaginando cenas de cinema onde casais fazem da água um motivo pra se molhar. Onde o homem torce pela chuva pra poder, cortês, oferecer asilo à sua dama. Meloso, até. Vá lá, molhado.



O certo é que o clima descompassado é uma de minhas últimas esperanças.
Enquanto desafiar nossa lógica e se rebelar contra ela, estará a salvo.

(e enquanto os grandes desastres naturais não chegam até nós, ocidentais marrentos, continuemos fingindo que o tempo é que está maluco.)






"Rain, down
rain, down
Come on rain, down
on me"
(Tom Yorke)



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P.S.: enquanto eu escrevia, Carol falava (sem nem saber o que eu estava fazendo): "aí começamos a falar do tempo...puta conversa de taxista, de... (não lembro o outro)"


P.S.2: e que só não chova na hora do futebol.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Papel

Pra palavra
é o palco
postado
a esperar...
um papel.


Papel dá palavra

Papel no começo
enga  tinhado
sentido, sem tema:
[papel pintado

    de uma só vez]
    pequena mão
    papel ras-ga-do
    se digo não.

Papel dá palavra

      Papel em branco
      de canto enfeitado
      e letra aprumada
      com tanto a dizer:
      papel de carta

         Amor de papel
         par tido, sonhado,
         em véu [escondido]
         papel    ________
                        assinado,
         passado.

(Papel dá palavra

            e serve o poeta
            que pena, pondera
        papel rasurado,
            amassado,
            ocupado
            com a palavra papel.)

Papel dá palavra

                 e adoece
                 marcado, timbrado
                 [cercado] de fel

                       papel amarelo
                      tão perto do céu
                       pra quê o papel?



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P.S.: Papel dobrado:
          passarinho

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Queime depois de ler

"Minha mão está suja

Preciso cortá-la." (CDA)



Quanto  vale uma lembrança?

Como maltratá-la? A quem ela serve?

Escrevo por não gostar de esquecer.  ( e quem gosta de ser esquecido?)


Dedicatórias. Mais gostoso que ganhar livros, é notá-los dedicados. De um calhamaço genérico e replicável, cria-se o especial. Cria-se a vontade de saber o que a pessoa quis lhe dizer ao oferecer esta ou aquela obra. Separemos os planos: há as dedicatórias formais, feitas geralmente pelos autores (como na foto acima), que refletem apenas uma admiração unilateral, idealizada; e há as dedicatórias sentimentais, tecidas por amigos, namorados, admiradores secretos. A estas me apego. Dedico-lhes gavetas e estantes, mais estas linhas. Às outras reservemos os museus, os grandes memoriais, e os póstumos leilões. 

Escrevo dedicatórias como quem prefacia um livro, tencionando me aproximar das palavras que virão e das pessoas a quem me dirijo. Junto as frases alheias às minhas, e ensaio a intimidade pela literatura. Crio a expectativa da avaliação do outro. Se gostar, reitera nossas afinidades. Se não, é questão de gosto (, né?). Chegará o dia em que eu escreverei dedicatórias em cadernos em branco, oferecendo-as como protagonistas, não como aperitivos. Poderão escrever maravilhas nas folhas, agigantando minhas palavras, ou simplesmente as deixarão alvas, constituindo o livro sobre o nada: o meu pretexto pra dedicar.

Dia desses eu soube que uma de minhas dedicatórias fora destacada de um livro. Sob a alegação de que o ato serviu para evitar um constrangimento com a pessoa que iria recebê-lo por empréstimo, a folha de rosto, pintada por meus dezenove anos, fora suprimida. Melhor que tivesse me pedido outro exemplar, ou que tivesse negado o empréstimo. Antes mesmo tivesse, num acesso de raiva, queimado todo o livro. Que ele tenha resistido, dissimulado, amputado, é que me chateia. Voltou a ser mais um dentre os tantos ensaios sobre a lucidez. Voltou a ser papel inanimado, comercializável.

(Numa situação semelhante, talvez eu hesitasse ao pensar no que fazer, mas o provável é que eu delegasse à própria pessoa a opção de lidar ou não com palavras supostamente indesejadas)

A folha dedicada, ao que parece, está guardada nalguma gaveta intocável. Ficará lá, aguardando (o quê?), alheia à trajetória do livro que a motivou. Antes carinho, agora veneno. Por ser nociva, fora afastada. No fundo... não a culpo. (porque) Conheço-a. Não peço que partilhe de meus valores cacetes. Mais: não pretendo escrever para crucificar os que abdicam de palavras a si dedicadas. Minhas palavras é que são corporativistas, e defendem umas às outras.

De algum modo, é como se eu cantalorasse Adriana Calcanhoto (o retrato que eu eu te dei / se ainda tens, não sei / mas se tiver, devolva-me). É como se eu precisasse saber quem eu fui. É como se, pelas minhas próprias palavras, eu voltasse aos meus anos pregressos. Não prescindo mesmo daquilo que já não é mais meu. As coisas passam, mudam... e algumas páginas já não dizem nada: é preciso [cortá-las.(?)

Ou reescrevê-las.(.)]


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"Pra esvaziar o já deserto
desorienta o incerto
ruma sem trajeto
nunca existiu mas eu deleto".
(Lenine)