quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Sessão da Tarde


                                        "o filme da minha vida" (legenda atribuída por meu cão)


- Quanto custa a pipoca?
Sem saber de nada, ele me disse:
- Você está desempregado?
Esta não era a palavra mais exata, mas, em seus tantos sentidos, fazia sentido ali também. Por mais que eu estivesse voluntariamente em tal situação, é o termo "desempregado" o que melhor define meu estado (status) diante do mundo. Emprego é o mesmo que uso, e no momento eu não tenho muita utilidade à parcela de vida que une aquele cara a mim. A ele, de nada eu valia. Com certo atraso, respondi:
- Sim, estou inutilizado.
À resposta meio inesperada, ele reagiu com um acréscimo de irritação:
- Aqui ninguém pergunta o preço antes de pedir alguma coisa.
O que havia com ele? Era insólito, e eu não pouparia esforços para constrangê-lo também, assim como não farei esforços para que esse relato tenha ares de veracidade. (se você acha que as falas e as sequências são artificializadas propositalmente, pode estar certo. se achar que foi assim mesmo que aconteceu, pode estar certo também.)
- Aqui ninguém é todo mundo?
- Não, todo mundo é alguém; ninguém é só quem pergunta.
- Eu sou outro ninguém, então: meu dinheiro é finito e prefiro me precaver.
- E você tem jeito de quem fez faculdade... o diploma não ajudou a conseguir trabalho ou você é que ainda não está procurando?
- Sou um vagabundo, não é?
- Não foi o que eu disse. É que há pessoas cujos pais não deixam trabalhar enquanto estudam, e assim elas vão permanecendo na escola por tempo indeterminado. São "acadêmicos", dizem. Alíás, você sabe o que significa isso de "acadêmicos"? Modo tão bonito de dizer que a pessoa é craque nos estudos. Não há ninguém assim no meu bairro, mas vira e mexe eu ouço algum frequentador aqui do cinema soltando essas palavras: acadêmico, erudito, intelectual. Pomposo, não? Outro aliás: você é desses?
- O senhor pergunta bem (, e pergunta muito, pensei). Já não lembro do começo. Sei que o que existe é um certo preconceito das duas partes: os acadêmicos abdicam do trabalho braçal por poder não concordar com o sistema e os trabalhadores ironizam os estudantes ao notar o quanto suas falas justiceiras contrastam com seus chinelos de dedo. E não, eu não sou "um desses", nem sou vagabundo.
- Eu não tinha nem citado os chinelos...
- Mas eles é que denunciaram meu desemprego a você. Todas suas perguntas estão baseadas apenas no modo como me visto, e minhas respostas tendem a considerar também uma certa limitação de seu entendimento, já que eu, no fundo, acho que você é manipulado por seus patrões sem se dar conta disso, e sua alienação é governante de suas opiniões. Nós dois jogamos sujo o tempo todo e eu, como último recurso retórico, finjo estar ciente dessa camada implícita que há em nossa conversa.
- Você é que responde a coisas não perguntadas. Bastava dizer que está desempregado, que a vida está dura, que os políticos não prestam, e nada seria tão difícil. As coisas são mais fáceis quando as pintamos difíceis: encontram respaldo nas aquiescências convencionais. Não me olhe desse jeito! Não se surpreenda com o fato de eu também saber falar. Logo você, que entende tanto o que há por trás das coisas, ficar com esse semblante de quem não pode conceber que haja alguém além do estereótipo que você criou para os vendedores de pipoca?
Era inequívoco: sua primeira pergunta era a desforra; era sua vingança diária contra aqueles que cabiam no perfil dos pseudo-intelectuais que frequentavam a "cena alternativa" da cidade. Ao perguntar se eu estava desempregado, queria apenas me abalar e explicitar a iniquidade que nos cerca.
- O filme já vai começar...
- Claro, os filmes são sempre convenientes...(risos)
- Olha, você sabe mais do que eu sobre a vida, tá? Ficamos aqui rondando o que há de simbólico em meu desemprego, e você esteve jogando comigo. Se o que queria era confundir meus discursos, se deu bem.
- O filme não ia começar?
- Sim, mas é preciso que você saiba que eu nem prefiro usar chinelos quando vou pra longe de casa, e que só os calcei como sinal de alteridade. Que agora eu sei que foi por isso. Minha identidade está relacionada ao meu estilo de pisar. Pedi demissão na semana passada, e terminei minha faculdade ainda ontem. Sou o alguém (bacharel) e o ninguém (vagabundo) ao mesmo tempo. O grande problema é que não sou um acadêmico nem sou um trabalhador "de verdade": estou nesse limbo composto pelos que foram deslocados pelo mundo. Eu não vendo a pipoca nem crio o filme: sou cliente; sou platéia.
- Mocinho, não é pra tanto. As coisas um dia se aprumam, ou a gente se conforma com elas. Todos têm seus problemas, e logo passa.
- Agora quer conduzir nosso diálogo aos lugares-comuns para amputá-lo de uma vez? De que adianta se livrar de mim se ninguém compra sua pipoca?
- Você tem sérios problemas. O filme já deve ter vencido os traillers, e sua sessão de terapia terminou. Não tenho mais o que lhe dizer, e não me importo com o índice de vendas das pipocas. Com ou sem movimento, sempre haverá o pipoqueiro.

Suas últimas palavras pareciam decepcionadas, e eu sabia que esse era o derradeiro filme que eu assistiria naquele lugar enquanto aquele fosse o pipoqueiro. Culpei-me por essa exposição saideira ao constatar que ela decretara o fim de nossa conversa. Lamentei estar sozinho e não ter a quem procurar quando entrasse na sala. Vi, então, que eu vivo procurando um algo que sempre me é indefinido ou indeferido.
Ele, provocador, ainda soltou:

- O filme já começou e, nesse horário, é sempre o mesmo.
- Já entendi. Eu nunca gostei de pipoca, sabia?

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Você tem orkut?



                                                                               (Após duas ou três frases trocadas, ela me perguntou:
                                                                                   - Você tem orkut?
                                                                                   - Tenho. Digite "noubar" e só encontrará a mim.
                                                                                   Estava selada nossa amizade.)



Está tão fácil estabelecer contato com quem tem acesso à internet, que eu ando meio assustado comigo mesmo. A possibilidade de acompanhar a vida de meus amigos, inimigos e, vá lá, de meus ídolos, é tão instigante quanto preocupante. Ninguém mais sai de nossa vida de vez, a menos que queira. Extinguiram-se os amores de verão: é simples encontrá-lo no inverno, à distância. O anonimato, até nos casos em que é requerido, funciona cada vez menos. A despeito das pistas falsas plantadas para resguardar a identidade, qualquer deslize produz um indício passível de ser rastreado na web.

Quantos amigos de amigos nossos são alvo de nossa curiosidade sem ao menos suspeitar dela? Consideremos que você, contrário, pensasse: "mas só se expõe na internet quem quer". Em parte, teria razão. Eu, insistente, diria que a existência virtual já foi institucionalizada. Toda ficha cadastral pede email, e eu já vi algumas em que ele é obrigatório. Antes cedíamos aos amigos nosso endereço, depois o telefone, depois os telefones; hoje os msn's, twitter's, emails, orkut's, etc. Cada uma de nossas atividades possui seu próprio grupo de mensagens: amigos do colégio; amigos da faculdade; colegas/amigos do trabalho; galera do futebol; curso tal; etc (de novo).

Há vida longe das telinhas: miserável ou antiquada, mas há. Embora eu me surpreenda com os "amigos sugeridos" pelo orkut (tem gente ali que eu nunca adicionaria, nem gostaria de ter notícias), de resto, essa integração que a rede proporciona sempre me fez bem. Nela, conheci pessoas que mudaram minha vida, expus e modelei minhas palavras (minhas personalidades), e anunciei ao (meu) mundo o que bastava pra que eu me calasse. É tanta substituição, tanta foto que a gente já tira dizendo "essa é de orkut" (tanto exibicionismo travestido de compartilhamento), que tudo soa meio invertido: ao invés de publicarmos aqui o que se faz "na vida real", já fazemos sob o formato que melhor se enquadraria ao desejo de publicação. Sim, por várias vezes isso pode ser bom. A mim é: alguns temas só saem de minha cabeça quando os submeto a uma postagem.

O que me coloca em estado de alerta é o espaço que o mundo intateável ocupa em minha vida. Quantos emails já não esperei à toa? Quantos já deixei de responder? Quantos, ao ver o remetente, nem abro mais? A transição de amigo a lixo eletrônico é notada - e lamentada - e revidada sob efeito de anestésicos. Um acervo interminável vai se formando. Dia desses me entreti lendo conversas "antigas" que foram salvas pelo gmail, e mesmo trocas significativas de correios eletrônicos. Como não apago as correspondências virtuais (já que há um espaço sempre crescente para elas), um mundo de palavras vai se acumulando, e dentro em breve será impossível recapitular tudo. Da seleção se farão outras seleções, até sobrar apenas o que eu  escrevi a mim mesmo.

Minha estante de livros tem competido com os blogueiros (semana passada encontrei uma "safra" de pernambucanos que me motivou um bocado); minha dvdteca perde de lavada para o youtube, meus cd's não têm outra função senão enfeitar meu quarto e atestar mais uma de minha coleções adolescentes. E eu, que acompanhei o surgimento dessas inovações todas, já me assemelho a um velho - carinhosamente falando - daqueles que se deslumbram a toda hora com "o novo", que dizem "no meu tempo..." e se veem ultrapassados por sua própria vida.

Tenho saudades da procura, mas não dispenso a chance do encontro.

(Guardo minhas cartas na gaveta pra que elas não confundam minhas digitais.)


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Noubar Sarkissian Junior
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