terça-feira, 19 de maio de 2009

X (letra viva)

X deseja voar. Pensa em pedir transferência para o patamar dos números. Quer por qualquer motivo: pelo motivo que lhe emprestarem; ou por qualquer outro que julgarem apropriado para o caso; pelo sem-motivo. As pessoas (e as letras) não desejam voar a fim de ir pra longe. Só almejam chegar mais perto de si, ou chegar num lugar onde não seja normal se ater às orações subordinadas e à busca de coesão, coerência. Lá onde o anonimato é o grande sonho a ser andado. O mundo das palavras avulsas! Pra que apenas as coisas desconexas perturbem X, Y, ou N. Sua existência carece de um lugar sem parágrafos profícuos, quiçá sem nada importante para se dizer. X não gosta da responsabilidade de se amigar em palavras.

X quer viajar, ainda que por terra. Dizem que ele é esperado pelos cariocas, que já andam roubando os sons do S. X não precisa de mapas pra planejar e orientar sua viagem, mas de uma razão pra ficar. Se pedirem pra que fique, sem justificativa nem nada, ele cede. Num ato que lhe soa heróico, abdica do distante para atender a quem quiser sua companhia. Pois é isso que espera: ser querido. Não lhe agradam as ciências, as crenças religiosas, ou as reuniões da academia brasileira de letras. O que mais lhe atrai são os olhares desclassificados, que ainda são lícitos (!): os que ele troca com palavras de seu cotidiano, na poesia, na crônica, no desabafo (seus meios de transporte) ... Essas paixões silenciosas que acontecem pelas manhãs, ensejadas por um acento desarrumado, ou um ou dois pontos desavisados. Aquelas das quais ninguém ficará sabendo, pois não serão escritas nem contadas. X, mancomunado com as outras consoantes, tem autonomia sob os registros. Se não quiserem dizer, não dizem, e ninguém contesta. Azar dos pensamentos, que pleiteiam espaços nas cabeças dos loucos, e logo são descartados.

X vive em crise alfabética, mas só partirá se cá não mais encontrar sentenças encantadoras. Quando tudo finalmente se tornar onomatopéia, ele não suportará a fadiga de seus dias, e irá. Quiséramos todos acreditar que isso passará. Quisera também X. O ceticismo não lhe foi apresentado como uma das opções. Uma vez cultivado, ecoou. Em quantos verbos X está presente? Deixar, puxar, abaixar... Se não fosse a matemática e suas F de X, é provável que lhe esquecessem.

Não há muito que fazer por X. Com vontade de ser um nome real, ele se insinua a todas as vogais que conhece: abertas, fechadas, nasais. Queria todas elas, mas nem ditongos são permetidos no reino das palavras de amor. X também briga, enraivece. Duela com o CH, com o Z, pois sabe que são eles seus maiores inimigos. No dia em que atestarem seu caráter descartável, X terá, forçosamente, de seguir outros rumos. Pedirá abrigo aos outros idiomas que ainda lhe aceitarem como letra viva, embora doente. Como que homeopaticamente, vão dizendo a X que ele faz bem a alguém. Ele está no êxito, no exótico, no exato, no exemplo (notam como o Z é o grande oponente?). Adiam seu desuso. Sub-utilizam.


X, e essa babaquice toda, só existem se escritos; e eu só aguento se os escrevo.

_______________________________________________________________

Lo que pasa es que se creen sábios. Se creen sabios porque han juntado un montón de libros y se los han comido. Me da risa, porque en realidad son buenos muchachos y viven convencidos de que lo que estudian y lo que hacen son cosas muy difíciles y profundas. En el circo es igual, Bruno (X), y entre nosostros es igual. La gente se figura que algunas cosas son el colmo de la dificultad, y por eso aplauden a los trapecistas, o a mí. Yo no sé qué se imaginan, que uno se está haciendo pedazos para tocar bien, o que el trapecista se rompe los tendones cada vez que da un salto. En realidad, las cosas verdaderamente difíciles son otras tan distintas, todo lo que la gente cree poder hacer a cada momento. Mirar, por ejemplo, o compreender a um perro o a um gato. Esas son las dificultades, las grandes dificultades.

(um saxofonista virtuose, num trecho que pode não fazer muito sentido enquanto trecho, mas que me afeta. Em “El perseguidor”, de Julio Cortazar. Indicado a mim por um amigo [“el comedor”].)

_______________________________________________________________


à Carol,
como desculpas por meu desleixo, e gratidão por suas palavras.
Gênia, mesmo.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Rui Barbosa que me desculpe

"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".
(autor ainda desconhecido. Fiquemos com anônimo do século IV.)

_______________________________________________

-Ah, Júniu, esse negócio de estudar nunca foi pra mim, não. Isso de ficar parado, lendo, cansa os olhos, pede uma pestana. Não nasci pra isso, e agora, depois de velho, dá mais preguiça ainda...Se eu me lembro de algo que tenha lido e gostado? Do pouco, quase nada que vi, adoro um poema do Castro Alves, mas ninguém conhece. Já procurei em bibliotecas: ia, pedia os livros do autor, e os vasculhava atrás do poema. Nunca encontrei. Lembro de ter lido, gostado, e meu pecado foi não ter anotado. Um trecho? Dizia algo como “De tanto ver triunfar a injustiça, (é...) (é...não lembro, mas terminava com) o homem chega a ter vergonha de ser honesto”. Uma coisa linda, e que vale bem pra essa sujeira que vemos até hoje, cada vez maior, sem dar chance pra esperança nenhuma. Ah, você vai procurar, então? Bom, mas nem na sua faculdade deve ter. Veja lá pra mim, sim, e assim a gente confirma que isso nem foi publicado. Velho tem o direito de ser caduco. O dever. Cê olha, e depois me conta. Sem pressa, sem trabalho.

Seu Nelson, esse que disse. Velho, contador de causos, sabedor pela vida. É daquelas pessoas capazes de incutir nostalgia em quem não viveu, feito prótese memorial. Mata o tempo, cria o papo, faz de conta. E é ranzinza, todo cheio de rabugem: gosta pouco de fazer esforço inútil. Não entende essa juventude de hoje em dia. Acha que futebol só valia a pena no tempo do Pelé, e que o que se vê nos campos (tempos) modernos é um desfile de pernas-de-pau, ganhadores de dinheiro e prestígio indevidos. Fora meu patrão por dois ou três anos. Em meio ao trabalho, questionava o que me levava a ter disposição pra ler aquelas coisas de escola. Sua palavra era oral, mutável, encenável.

(Por julgar essa descrição bastante, volto direto ao relato. )

Algo me dizia que o tal poema estaria por aí, e que não seria difícil encontrá-lo. Antes de mergulhar na biblioteca, caçando os trechos lembrados em cada escrito, em antologias ou qualquer coisa assim, fiz o fácil: googlei. “De tanto ver triunfar a injustiça + Castro Alves”: nada muito confiável; nenhuma relação imediata. De novo: “de tanto ver triunfar a injustiça” (e só!):lá estava, em diversos links, o texto que continha as frases soltas que eu digitara. O que me atrapalhou, porém, foi a autoria. Nada de Castro Alves. Nem menção. Os sites eram categóricos: o texto era de Rui Barbosa, senador da República, lá pelos primeiros anos do século passado. O mesmo Rui, da alcunha “Águia de Haia”, que por vezes fora tomado por conservador, mas que escrevia direitinho. Que tenha sido, que tenha feito. Era incontestável: Seu Nelson estava enganado, e isso pôde ser atestado pela recorrência das informações. Sua certeza, no entanto, era de assustar. Difundia o nome de Castro Alves, como figura marcante em sua rara vida literária; havia procurado, revirado; male-male, lembrava trechos.

Cheguei à copiadora (local onde eu trabalhava), mostrei a folha com o texto, e Seu Nelson quase não acreditou. De cara, surpreendera-se com a vastidão da imaginária biblioteca. Mal soube que eu havia retirado aquilo da internet, já compôs aquele semblante desconfiado, velhaco de esperto.

- Pois é, o único problema é que na internet diz que o texto é do Rui Barbosa, e não do Castro Alves...
- É por isso que eu falo, Juniô: não dá pra confiar nessas coisas de informática, computador. Tudo parece tão mais fácil, e a vida não é assim. Em todo o caso, lembro que é do Castro Alves, e que era em forma de poema, e não desse jeito, escrito de uma vez.

Eu poderia defender o Rui, falar da credibilidade dos sites consultados, e até provar a falha mnemônica de meu amigo patrão. Mas isso daria um baita trabalho; usaria o que há de melhor em minha capacidade de persuasão; e, pra além de tudo, lesaria o que havia de mais seguro nas lembranças de Seu Nelson. Que ele se atenha ao que realmente lhe importa. Que siga dizendo estórias ao seu modo bom-de-tão-amargo, e que dê as referências que lhe vierem à mente, pois os "poetas" não-creditados também morrem, e tudo se esquece.

- Ah, deve estar errado mesmo. Sabe que eu também não boto fé nesse mundo virtual? De certo eles fizeram alguma confusão.
- Sim, sim...essa gente! Faz o seguinte: imprima com letras grandes, e cole esse texto no mural, pr’esses alunos verem e aprenderem algo que presta...rs (quase sorriso):



"De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus,

o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto".

(CASTRO ALVES, e tenho dito!)



_______________________________________________


Seu Nelson segue trabalhando na copiadora (onde se tira xerox) da Unicastelo, em Itaquera. Beira os setenta anos, e alegra. E o texto não tem pretensões de mostrar um lado "humanitário", "solidário", de seu autor. Ele ilustra uma decisão, boa pra mim, e que julguei boa pro seu nelson também. Reflitam: quantos alunos da faculdade podem ter visto o trecho no mural, e ainda referenciam castro alves por aí. Pra eles, fui nocivo, ao menos por confundir suas cabeças. escolhas.