sexta-feira, 8 de maio de 2009

Rui Barbosa que me desculpe

"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto".
(autor ainda desconhecido. Fiquemos com anônimo do século IV.)

_______________________________________________

-Ah, Júniu, esse negócio de estudar nunca foi pra mim, não. Isso de ficar parado, lendo, cansa os olhos, pede uma pestana. Não nasci pra isso, e agora, depois de velho, dá mais preguiça ainda...Se eu me lembro de algo que tenha lido e gostado? Do pouco, quase nada que vi, adoro um poema do Castro Alves, mas ninguém conhece. Já procurei em bibliotecas: ia, pedia os livros do autor, e os vasculhava atrás do poema. Nunca encontrei. Lembro de ter lido, gostado, e meu pecado foi não ter anotado. Um trecho? Dizia algo como “De tanto ver triunfar a injustiça, (é...) (é...não lembro, mas terminava com) o homem chega a ter vergonha de ser honesto”. Uma coisa linda, e que vale bem pra essa sujeira que vemos até hoje, cada vez maior, sem dar chance pra esperança nenhuma. Ah, você vai procurar, então? Bom, mas nem na sua faculdade deve ter. Veja lá pra mim, sim, e assim a gente confirma que isso nem foi publicado. Velho tem o direito de ser caduco. O dever. Cê olha, e depois me conta. Sem pressa, sem trabalho.

Seu Nelson, esse que disse. Velho, contador de causos, sabedor pela vida. É daquelas pessoas capazes de incutir nostalgia em quem não viveu, feito prótese memorial. Mata o tempo, cria o papo, faz de conta. E é ranzinza, todo cheio de rabugem: gosta pouco de fazer esforço inútil. Não entende essa juventude de hoje em dia. Acha que futebol só valia a pena no tempo do Pelé, e que o que se vê nos campos (tempos) modernos é um desfile de pernas-de-pau, ganhadores de dinheiro e prestígio indevidos. Fora meu patrão por dois ou três anos. Em meio ao trabalho, questionava o que me levava a ter disposição pra ler aquelas coisas de escola. Sua palavra era oral, mutável, encenável.

(Por julgar essa descrição bastante, volto direto ao relato. )

Algo me dizia que o tal poema estaria por aí, e que não seria difícil encontrá-lo. Antes de mergulhar na biblioteca, caçando os trechos lembrados em cada escrito, em antologias ou qualquer coisa assim, fiz o fácil: googlei. “De tanto ver triunfar a injustiça + Castro Alves”: nada muito confiável; nenhuma relação imediata. De novo: “de tanto ver triunfar a injustiça” (e só!):lá estava, em diversos links, o texto que continha as frases soltas que eu digitara. O que me atrapalhou, porém, foi a autoria. Nada de Castro Alves. Nem menção. Os sites eram categóricos: o texto era de Rui Barbosa, senador da República, lá pelos primeiros anos do século passado. O mesmo Rui, da alcunha “Águia de Haia”, que por vezes fora tomado por conservador, mas que escrevia direitinho. Que tenha sido, que tenha feito. Era incontestável: Seu Nelson estava enganado, e isso pôde ser atestado pela recorrência das informações. Sua certeza, no entanto, era de assustar. Difundia o nome de Castro Alves, como figura marcante em sua rara vida literária; havia procurado, revirado; male-male, lembrava trechos.

Cheguei à copiadora (local onde eu trabalhava), mostrei a folha com o texto, e Seu Nelson quase não acreditou. De cara, surpreendera-se com a vastidão da imaginária biblioteca. Mal soube que eu havia retirado aquilo da internet, já compôs aquele semblante desconfiado, velhaco de esperto.

- Pois é, o único problema é que na internet diz que o texto é do Rui Barbosa, e não do Castro Alves...
- É por isso que eu falo, Juniô: não dá pra confiar nessas coisas de informática, computador. Tudo parece tão mais fácil, e a vida não é assim. Em todo o caso, lembro que é do Castro Alves, e que era em forma de poema, e não desse jeito, escrito de uma vez.

Eu poderia defender o Rui, falar da credibilidade dos sites consultados, e até provar a falha mnemônica de meu amigo patrão. Mas isso daria um baita trabalho; usaria o que há de melhor em minha capacidade de persuasão; e, pra além de tudo, lesaria o que havia de mais seguro nas lembranças de Seu Nelson. Que ele se atenha ao que realmente lhe importa. Que siga dizendo estórias ao seu modo bom-de-tão-amargo, e que dê as referências que lhe vierem à mente, pois os "poetas" não-creditados também morrem, e tudo se esquece.

- Ah, deve estar errado mesmo. Sabe que eu também não boto fé nesse mundo virtual? De certo eles fizeram alguma confusão.
- Sim, sim...essa gente! Faz o seguinte: imprima com letras grandes, e cole esse texto no mural, pr’esses alunos verem e aprenderem algo que presta...rs (quase sorriso):



"De tanto ver triunfar as nulidades,
de tanto ver prosperar a desonra,
de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus,

o homem chega a desanimar da virtude,
a rir-se da honra,
a ter vergonha de ser honesto".

(CASTRO ALVES, e tenho dito!)



_______________________________________________


Seu Nelson segue trabalhando na copiadora (onde se tira xerox) da Unicastelo, em Itaquera. Beira os setenta anos, e alegra. E o texto não tem pretensões de mostrar um lado "humanitário", "solidário", de seu autor. Ele ilustra uma decisão, boa pra mim, e que julguei boa pro seu nelson também. Reflitam: quantos alunos da faculdade podem ter visto o trecho no mural, e ainda referenciam castro alves por aí. Pra eles, fui nocivo, ao menos por confundir suas cabeças. escolhas.

8 comentários:

Carol Kuk disse...

Eu vi você postando, sabia?! -'Não se pode fazer nada nesse mundo sem ser viagiado, VTNC!'- você deve estra pensando! Hahaha. E daí, por isso, eu vou ser a primeira a comentar.
E o meu comentário é algo do tipo: que bonito isso tudo. Vc e esse seu cérebroassentimentado, seu sentimentoracionalizado. Ai ai, sócio...

Newton disse...

ótimo!!!!
Esse blog é muito bom! foi uma inspiração para a criação do meu blog...

Anônimo disse...

Ae Nrx, deixa o endereço aí então!

Noubar Sarkissian Junior disse...

Que beleza, hein, carol!

Eu devia ter desconfiado de sua astúcia. Passou algumas vezes atrás do meu computador, tal. De certo, notara.

Valeu, sempre.

Por fingir não ter visto (o famoso "fazer vista grossa"; "passar um pano");
Por me ouvir tão compreensivamente; por falar;
Por contribuir de forma perene por aqui.

"gênia"!

Ei, anônimo, o link do "Nrx" está na parte do "Visite" do meu blog.

Este cara talentosíssimo atende por "newton", e começou recentemente a postar umas coisas num blog! Veja(m) lá!

Sal disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Sal disse...

Palavra encantada, encanto de autor e uma escolha certeira.

Não é só deus que escreve certo por linhas tortas.
Conhecer o Rui Barbosa através do Seu Nelson e do Castro Alves, me parece direito.
Assim como achar que o Lirinha (Cordel do Fogo Encantado) é o dono das palavras do João Cabral. E vamos assim, costurando as referências e as inferências dessas palavras na gente. O que é escrito por linhas faladas também está dito. E o que fica, é a criação coletiva e a recriação criativa. As notas de rodapé que desentortem o resto.

Antes de terminar, um trecho do João, que é do Lirinha, que é dos amantes:

“O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. o amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. o amor comeu meus cartões de visita. o amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.”

O trecho é d’ “Os Três Mal-Amados”. Ou não =).

amante disse...

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.
(...)O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte." - JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Camila de Sá disse...

Meu Deus! Era esse o poema! Fora este o poema em letras grandes que vi pregado na parede de onde eu ia começar a estagiar há uns dois, três meses atrás... no Seade. Sim! E lembro que li e reli várias vezes, sentada no sofá de um cantinho de espera nos dias em que lá estive. Mas nesse caso nem se arriscaram a colocar sua autoria. Autor desconhecido.
Seja de quem for, já compõe um outro ótimo texto (aqui) para ser pensado! Muito bom, Noubar!
Gostei do comentário da Sarah também. Sob efeito de Palavra (En)cantada também, pelo jeito, né?