Invariavelmente, não trocavam muitas palavras. Os diálogos só serviam para comunicar compromissos:
- Hoje chegarei uma hora mais tarde, não mais nem menos que isso, pois preciso resolver pendências de nosso futuro apartamento - dizia ele enquanto acertava o nó da gravata.
- Não há problema! Hoje, justamente hoje (!) eu prometi que iria visitar aquela minha amiga que está doente, e posso chegar exatamente a tempo de lhe servir o jantar - emendava ela, entretida com uma mancha tenaz que se instalou em seu pano-de-prato predileto.
As noites, é bem verdade, passavam juntos. Tão próximos e tão distantes quanto eu e esse texto. Pensavam no cansativo e repleto dia de hoje e planejavam o de amanhã. Sexo só faziam aos sábados, mas compensavam a abstinência do resto da semana com intermináveis 20 segundos de satisfação: era apenas ele pensar na garota que não conquistou em sua época de colégio e...pronto! Ela já havia decorado as caretas que anunciavam o orgasmo dele e, na hora exata, encenava o seu! Os dois aproveitavam o ar convidativo da luz apagada e dormiam virados para mundos opostos. O domingo viria e toda a culpa por possíveis deslizes seria paga diante de Deus, na missa das oito. Eles não tinham muito do que reclamar. Todos os tinham como modelo de vida harmoniosa, pacífica, compreensiva: conjugal. Acreditavam nisso e agradeciam por estarem juntos há vinte anos, sem discussões nem traições físicas.
Só um detalhe os desviava do destino ideal: nunca tiveram filhos. Nos primeiros anos de casamento, até procuraram auxilio médico, mas ambos foram considerados aptos à concepção. Como prudência e cautela eram-lhe qualidades abundantes, isso não os afligia, tão pouco desesperava. Quando fosse a vontade divina, num sábado qualquer, produziriam um herdeiro que, se a probabilidade for uma ciência confiável, seria eleito Presidente da República pelo PSDB, e ovacionado em seu discurso de posse onde a honra e a seriedade seriam aclamadas em todas as frases.
Agora, com a menopausa e a impotência se aproximando, talvez recorrecem mais uma vez à medicina para escapar dessa orfandade às avessas. Os colegas viviam angustiados pelo drama não sentido pelo casal. A vida não poderia se privar de uma estirpe desse calibre. A reprodução das espécies admiradas tinha de ser prioridade pro barbudo lá de cima. Neste mundo perfeito que Ele criou, não há espaço para a injustiça que recai sobre o nosso casal.
6 comentários:
Nossa!!!!!!!!!
esse eu não esperava!!!!na verdade, não esperava esse "tipo" de texto aqui, nunca li algo assim que viesse de vocÊ, mas esperaria muito talento...e não me decepcionei!Parabéns! VocÊ é demais.
esse provou que vc escreve muito, é espetacular.
Noubar!
Bom, já faz um tempo que vc nos comunicou da existência deste blog, mas só agora pude parar e ler. Fora este, li alguns dos outros textos tb, e devo dizer que, cara! Vc escreve muito bem! Escrever sobre coisas banais e tão cotidianas, por mais que pareça simples, não é! Parabéns!
abdicar da felicidade para atingir o equilíbrio... acho que nunca havia pensado por esse lado: sempre vi o equilíbrio como forma de atingir a felicidade.
mas essa auto-modelagem pode ser perigosa mesmo, tira a naturalidade das coisas e, quando se percebe, já não se consegue ser tão feliz como era pra ser.
bom, meus cumprimentos a vc, noubar, que o texto está inovador mesmo!
crítico!
artístico!
genial!
abraço.
Preste atenção! Dificilmente farei um comentário como este outra vez... Seu texto me parece um poema de Jacques Prévert. Sutil e crítico, atento às miudezas do cotidiano e agudo para torná-las perturbadoras. Se não for redundante, acho que os poemas de Prévert irão te cair bem!
Il a mis le café
Dans la tasse
Il a mis le lait
Dans la tasse de café
Il a mis le sucre
Dans le café au lait
Avec la petite cuillère
Il a tourné
Il a bu le café au lait
Et il a reposé la tasse
Sans me parler
Il a alumé
Une cigarette
Il a fait des ronds
Avec la fumée
Il a mis les cendres
Dans le cendrier
Sans me parler
Sans me regarder
Il s'est levé
Il a mis
Son manteau de pluie
Parce qu'il pleuvait
Et il est parti
Sous la pluie
Sans une parole
Sans me regarder
Et moi j'ai pris
Ma tête dans ma main
Et j'ai pleuré.
(Jacques Prévert)
Desculpe a tosca tradução... meu francês ainda é porco.
Ele colocou o café
Na xícara
Ele colocou o leite
Na xícara do café
Ele colocou o açúcar
No café com leite
Com a pequena colher
Ele mexeu
Ele bebeu o café com leite
E ele pousou a xícara
Sem me falar
Ele acendeu
Um cigarro
Ele fez círculos
Com a fumaça
Ele colocou as cinzas
No cinzeiro
Sem me falar
Sem me olhar
Ele se levantou
Ele colocou
Sua capa de chuva
Porque chovia
E ele partiu
Sob a chuva
Sem uma palavra
Sem me olhar
E eu pus
Minha cabeça na minha mão
E eu chorei.
Excelente!!! Beijos Nubita. Tenho orgulho de conhecer um carinha como você. Quem é KS? A Karen? Gostei do comentário de KS também.
Noubar... que sensibilidade, hein! De onde veio a inspiração para a criação do texto? Não pude deixar de me prender a ele e de enxergar tudo com um pessimismo muito grande. Não sei se era essa a sua intenção, mas de repente as instituições pareceram todas elas falidas.
Queria mesmo saber o que motivou a escrever isso.
Abraços!
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