segunda-feira, 23 de março de 2009

Que é tudo que vale a pena

- Quer seu guarda-chuva?
- Não! Eu quero a chuva!

Sua banda predileta estava no palco e, pra ela, talvez aquele momento fosse digno de chuva. Se o sol já havia se posto, e a lua era ofuscada por nuvens e holofotes, que a natureza se fizesse lembrar assim, jorrando. Que marcasse presença e trouxesse mais lembranças à baianinha, que as colecionava.

Sim, viera de Salvador para vê-los tocar, e fez pequenos os trinta quilômetros que me separavam do local do show.

Ressaltou as saudades da mãe; preteriu a cerveja e tomou refrigerantes; elegeu aquela noite como a mais feliz de sua vida. Da sabedoria casta de seus dezessete anos, envergonhou minha experiência indesejada. Recordou-me de que é mais gostoso ser pequeno, pra poder acreditar, sem ressalvas, na plena beleza de um instante; num domingo nublado.

Não trocamos uma palavra sequer, e palavras podem realmente ser desnecessárias. Quando nossos olhares se cruzaram, ao som de Último Romance, foi como se tivéssemos sido apresentados pela afinidade. Compartilhamos lágrimas. Poucas. Apenas o suficiente pra que pudéssemos voltar ao nosso infinito particular. Travamos uma relação de simbiose conveniente: emprestamos um ao outro a sensação de que é legítimo se emocionar.

Espelhamo-nos.





E as músicas seguiram, com pressa de acabar. O tumulto conduziu a baiana para outro lugar. Qualquer. Ainda restavam três horas até o mais badalado show da noite, e eu não ficaria surpreso se ela nem quisesse mais espiá-lo.

Eu queria.

Fui ficando cada vez mais espremido. Suspenso pela massa. Pernas partindo-se. Sede. Fome. E uma contraditória vontade de fugir de lá. Atrás de mim, o mundo. Melhor ficar.

Sem maiores enrolações. Próxima.

No deslocamento involuntário oferecido por esses lugares abarrotados, surgiu a segunda menina. Havia chegado a hora do espetáculo (foi o que literalmente se viu), e a moça já aparentava ter uma empolgação acima da média

Camiseta da USP, dezenas de piercings no rosto, e um risada indecifrável. Primeira impressão: medo. Desde o primeiro acorde, ela entrou em êxtase. Conhecia e berrava cada sílaba das vinte e cinco músicas tocadas. Não tinha noção. Sacudia-se freneticamente, e acertava todos os outros fãs com sua cabeça e seus braços. Certo temor.

Do alto de meus quase dois metros, pude me esquivar, mas, se ela realmente viesse pro meu lado, não haveria escapatória. O friozinho não impediu que ela ficasse ensopada de suor. Nalguns momentos ela encostou em mim. Pensem nos peludos que jogam futebol sem camisa´: é quase isso. De um modo quase inaceitável pra um lugar daqueles, um espaço foi se abrindo em volta da garota. Todos se protegiam daquela que herdara da baianinha uma boa parcela da felicidade contida naquele ambiente.

Não a culpo por sua entrega. Ainda que seu comportamento e seu prazer explícito atrapalhassem todos ao seu redor, indiscutivelmente, ela vivia algo mais marcante do que eu. Desviei; contive meu pânico; e ainda deu tempo de admirar uma performance incrível, vinda lá de baixo das luzes. A distinção: eu contemplei; ela gozou. Talvez essa seja uma das únicas vezes em que eu admita que meu "jeito de curtir" pode ser inferior.

- Eu quero morrer! Eu POSSO morrer! - disse ela, tão logo soou a última nota.




Pronto. De bom mesmo, foi isso. Guardarei essas imagens na gaveta das primeiras impressões. Ficarei com o encanto juvenil da primeira menina, e com a postura autenticamente inescrupulosa da segunda. Elas compuseram o conc(s)erto inesperado de meu dia. Encenaram pra uma platéia de um homem só. Só.

Seguirão por aí, anônimas e distantes. Unidas pelo acaso de uma folha em branco.

E pelo deslocamento de um fã. Um caçador de histórias a serem contadas.

Porque falar dos outros é não precisar falar de si. É a trégua.

5 comentários:

Anônimo disse...

Nada como relatar experiências privadas em lugares públicos...e muito legal vc dividir isso com seus leitores. Quando abrimos os olhos para o que está em nossa volta, muitas coisas interessantes podem acontecer, podendo nos fazer sentir prazer ou repulsa...no mesmo dia do show lá estava eu prestigiando meu Timão no Pacaembú, mas, infelizmente, a experiência que me marcou não foi de um domingo de festa, com uma vitória feia (porém, vitória!!!), mas sim, como o ser humano consegue se rebaixar a um nível desprezível de existência, não consigo conceber o fato do futebol gerar tanta violência, é sério...
Bom, seu texto me fez lembrar deste "causo"...=)
Beijos!
Mi

Anônimo disse...

Caríssimo Noubar!!!

Como fico imaginando esse show!! Fiquei na casa da Barbara assistindo pelo multishow e cantando cada música.
É uma experiência fantástica, porém não concordo com vc de que há jeitos inferiores de curtir as coisas. Acho que o que vale é o que realmente significa para cada um a experiência, que em nós a cada momento remete a uma reação.

Parabéns por manter vivo esse espaço, é muito bom estarmos ligados nesse espaço.

Abraços
Ruivo

Anônimo disse...

"Porque falar dos outros é não precisar falar de si. É a trégua."

Mas mesmo assim, tá valendo...

beijão

Anônimo disse...

Noubar,

Do fim pro começo, como às vezes faço, digo que falar dos outros é a trégua, mas é também a régua. Sim, aquela, que usamos pra medir o mundo. Dizer que impressões os outros nos causaram é afirmar que nos impressionamos.
Ou, no seu caso, que contemplamos.
Essa é a impressão que vc deixa em mim, depois desse texto: contemplação.
E um pouco de melancolia.
Não por não ter aproveitado o show, mas por crer que não o fez.
Concordando com o ruivo, digo que não podemos hierarquizar as formas de curtir seja lá o que for.
Esse seu jeito de antentar aos detalhes é o que os deixa tão belos aos nossos olhos, mesmo que tristes.
Beijos!
Sarah

Renato Mullinari disse...

Bah... fantástico: o show... essas duas meninas... e essa sua descrição.

A vida se mostra um espetáculo pra quem sabe assistir, não é?

Muito bom... parabéns!!!